O indesejado
O novo cheira a sonho… até que o real se infiltra pela janela. Entre jiboias e vaporizadores, ela busca ressignificar o lar. Um conto sobre cheiros, silêncios e um vizinho esquecido pelo sistema.
Giselle Nunes
7/15/20252 min read


Finalmente a tão sonhada independência! Nova jornada, novos horizontes, nova moradia. Novo tudo. Sonhos a realizar. Comprar móveis foi como montar quebra-cabeça no apartamento pequeno de um só quarto. Eletrodomésticos, pesquisados com olhos sagazes para economizar. Roupa de cama e toalhas, macias, cheirosas, fofinhas para acarinhar o corpo. Quebra porta do banheiro e a máquina de lavar passar. Rebola a geladeira para entrar. Pinta aqui, ali, acolá. Paredes limpinhas e branquinhas, no bairro mais conhecido do Brasil. Mas há algo de errado.
– Nossa! Que fedor é esse? – questionou a jovem.
Odor empesteava todo o apartamento.
– Será a lixeira do prédio?
Foi ao corredor, se aproximou da lixeira.
– Não. Até cheira bem.
Entrou.
– Deve vir lá de fora.
Na janela do quarto, nada. Janela da sala. Fungou. Nada.
Andou pelos cômodos. Cheiro intenso na cozinha e banheiro.
– O mal cheiro vem pela janela da cozinha e basculante do banheiro.
Resolveu assuntar o porteiro.
Seu Joaquim trabalha há duas décadas no prédio. Sabia tudo. Nada escapava.
– Oi, seu Joaquim! Tudo bem com o senhor?
– Tudo. E a senhorita, gostando de morar aqui?
Ela pensou como abordar o assunto.
– Estou, sim. Mas às vezes cheiro ruim invade meu apartamento. Sabe o que é?
Seu Joaquim, contraiu o rosto e numa fala resmungada, esclareceu.
– Ah! Você também sente, menina.
A jovem balançou a cabeça em afirmativa.
– É o morador do sétimo andar. Falei com ele várias vezes. Muitos reclamam.
– Como assim?
– O homem tem problema de cabeça. Dias sem tomar banho, semanas sem limpar o apartamento e acumula porcarias. Fizeram abaixo assinado, reclamações na imobiliária. Ele esbraveja, bate à porta na cara dos outros e não dá papo. Ele fede.
– Não tem como fazer nada?
– Ninguém o visita. Não trabalha. Dizem que recebe pensão do governo e a família o deixa morar aqui.
– Isso tem remédio e tratamento.
– Ele não toma remédios. Diz que vira robô. Sinto muito. O advogado da imobiliária sentenciou causa perdida. A lei o protege. Enquanto isso, o mal cheiro exala em vários andares.
A jovem não sabia se sentia dó ou raiva. Não tinha jeito. Teria que achar solução.
Mudou as portas da cozinha e do banheiro. Vedação intensificou. Vaporizadores com cheiro de flores. Uma jiboia bem verdinha de folhas grandes no banheiro. Na cozinha, vaso com Espada-de-são-jorge. Quem sabe não espantaria o homem! Nunca se sabe.
Questão sociofamiliar crescente, abnegada, que assola lares e coletividades.