Infartar da vida
Entre o céu azul e as sacolas de latinhas, há histórias que quase ninguém vê. Mas Mafalda viu. E eu também vi. Às vezes, tudo que alguém precisa é ser ouvido antes que o peso da vida pese demais. Um conto sobre pausas necessárias, encontros improváveis e a cura que mora nos detalhes.
Giselle Nunes
7/23/20252 min read


Final da manhã. Sexta-feira invernosa. Céu azul e o sol ainda despertava calmamente. Dia bonito!
– Ah, Mafalda! Hoje, nada de academia. Aceita caminhar no calçadão?
Ela mexeu as orelhas de forma questionadora. Assim que peguei a coleira, saltitou “Vamos!”.
Segundo dia das férias. Precisava do ar marítimo e do sol apagando a palidez do cansaço. Os últimos dias de trabalho me viraram do avesso. Dormir não era mais o suficiente. Gripe dava os primeiros sinais. Olheiras já se estabeleciam. Às vezes, trabalho tantos dias sem folga que me sinto em uma bolha, alheia ao mundo. Ter três trabalhos exige grande dose de malabarismo. Quando me percebo ressaqueada, a caminhada ao sol à beira mar me salva da letargia adoecida.
Iniciamos o percurso na calçada coberta de grama. Mafalda sempre come matinhos e gosta de assustar pombos descansando à sombra dos coqueiros. Vento leve rondava a orla, mas não burlava a quentura do sol.
Posto 9 do Recreio dos Bandeirantes, bem em frente ao guarda-vidas. Referência à contagem de quilômetros percorridos. Na areia, pingos de gente. Mas no calçadão e bares, famílias e turistas – identificáveis, saboreavam o mormaço contagiante. Cachorros e crianças brincavam. Todos queriam aproveitar a brecha que o recesso, às vezes, dá.
Após um quilômetro, Mafalda se dirigiu à senhora sentada no banco de cimento, entre amendoeira e coqueiro. Aguçou-me curiosidade. Curvada, pernas cruzadas, par de tênis gasto, vestido florido branco e lilás, cabelos curtos grisalhos e viseira cinza. Escrevia em caderno espiral de folhas esbeiçadas com caneta Bic azul surrada.
– Vamos, Mafalda. – mas ela insistia paralisar e cheirar as duas sacolas de plástico jogadas no chão. Confesso. Fiquei instigada e a voz para que ela prosseguisse, não saiu enfática.
– Oi, mocinha! Aí só tem latinhas. – disse a senhora. – Deixe-a. Vai desistir. Não há nada de gostoso.
– Fazendo anotações? – a bisbilhotice gritava. Não é sempre que se vê uma pessoa anotando coisas no caderno em pleno calçadão da praia. A imagem merecia registro, mas não caminho com celular.
Olhos enrugados me encararam. Lábios rosados cansados sorriram.
– Escrevo quantas latinhas recolho no dia. Chego lá na Cooperativa tem tanta gente... Eles querem contá-las rapidamente e erram. Assim, já levo tudo anotado.
– A senhora é esperta. – Mafalda já não cheirava mais os sacos pretos. Focinho concentrava nas pernas e pés da senhora. Talvez quisesse descobrir suas andanças. – Dois sacos não são pouco?
– Cheguei cedo, mas estou cansada e triste. Perdi um amigo catador.
Emudeci. Não sabia o que dizer.
– Ele infartou da vida.
Interessante fala.
– Vê aqueles dois garotos sacudindo as bicicletas presas? – Olhei em direção às bicicletas abóboras. – Sempre fazem isso. Se acham alguma solta, roubam e a gente não pode falar nada. Moça, a gente nunca pode falar nada das coisas erradas que vemos todos os dias.
– Sinto muito. – continuava sem saber o que dizer. – Acredite, as coisas vão melhorar.
Olhos piedosos me encararam.
– É... quem sabe. Ainda não perdi a fé. – sorriu. – Deixe-me ir. Obrigada por me escutar.
– Que isso! Bom final de semana!
Prossegui. Passos acompanhados das palavras “infartou da vida”. Singular, enxergar a vida infartando pessoas. Me perguntei “O que não falo, não digo, não faço para a vida me infartar?”
Após dois quilômetros, sentei-me. Dei água para a Mafalda.
– Façamos um acordo, Mafalda. Uma vez por semana caminharemos aqui ao sol. Você assustará pombos, eu olharei o mundo entre o céu, o mar, amendoeiras, coqueiros e pinheiros. Combinado?
Retornamos e concluímos nossos quatro quilômetros de cura.